Minhas impressões sobre o Ato Médico

A quem não sabe do que se trata, o famoso Ato Médico é um Projeto de Lei cujo objetivo é regulamentar a profissão do médico no Brasil. O problema (e a fonte de discussão) é que para fazê-lo, o Ato Médico passa por cima das responsabilidades e atribuições de profissionais de diversas outras áreas da saúde, como fisioterapeutas, acupunturistas, nutricionistas e psicólogos. O texto original já sofreu muitas mudanças, atenuando as questões mais conflitantes, mas ainda não foi o bastante para resolver o problema. A seguir, vou listar alguns dos pontos que considero mais dignos de atenção no Projeto de Lei 7703/2006 e que estão levantando mais polêmica e preocupação.

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Artigo 4º

As principais polêmicas remetem ao Artigo 4º, que estabelece as atribuições exclusivas dos médicos:

Art. 4º, I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica

O diagnóstico nosológico se refere à classificação da doença do paciente, de acordo com a causa, mecanismo que originou a doença e o sintoma. Doença que é definida assim:

§ 1º Diagnóstico nosológico privativo do médico, para os efeitos desta Lei, restringe-se à determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo 2 (dois) dos seguintes critérios:
I – agente etiológico reconhecido;
II – grupo identificável de sinais ou sintomas;
III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.

As doenças consideradas pelo Ato Médico são as listadas pelo CID-10, desconsiderando o DSM (manual de diagnóstico de doenças mentais, usado por psiquiatras e psicólogos).

O § 2º desfaz um pouco a confusão quanto à atividade exclusiva, estabelecendo:

Não são privativos do médico os diagnósticos funcional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional e ambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva.

Todavia, a “respectiva prescrição terapêutica” é um problema, principalmente para psicólogos, nutricionistas e fisioterapeutas.

Imaginemos o seguinte cenário: uma mulher que sofre de anorexia procura uma nutricionista, por estar claramente subnutrida, passando mal. Conversando com a paciente, a nutricionista detecta uma pesada questão emocional, que pode estar influenciando o quadro do distúrbio alimentar em questão. O que acontece? A nutricionista não pode encaminhá-la a um psicólogo, somente a um médico. E se o médico, em uma rápida anamnese, achar que uma psicoterapia não é necessária, apenas um tratamento farmacológico (medicação)? A questão até começa antes: se a prescrição terapêutica é atribuição exclusiva do médico, a própria nutricionista pode dar início ao tratamento sem o “aval” de um médico?

Vamos a uma segunda hipótese: como o médico centraliza as atribuições de diagnóstico e prescrição terapêutica, você leva seu filho a um médico, porque ele não quer estudar, só quer brincar e não presta atenção na escola. O médico, que recebe uma miséria de repasse do plano de saúde e precisa atender cada paciente em até 10 minutos para receber um bom salário, ao ouvir sua queixa, dá ao seu filho o diagnóstico de TDAH e receita Ritalina. Nessas poucas linhas já existem inúmeros problemas, mas vou tentar enumerar alguns: (1) na pressa em dispensar o paciente, o médico nem percebe que o menino podia estar apenas sendo criança, baseou-se no diagnóstico nosológico, estabeleceu uma classificação e prescreveu um tratamento farmacológico, sem perceber o contexto que cercava o paciente; (2) o tratamento a base de remédios em casos como o TDAH não é terapêutico, ele apenas ameniza os sintomas, “acalmando” a criança; (3) percebe-se um esforço muito grande (inclusive de parte da indústria farmacêutica) em transformar comportamentos normais em patologias (já falei sobre isso nesse texto), para movimentar a já milionária indústria (que subsidia médicos); (4) a pessoa normal confia no que disse o médico, afinal, o poder de decisão foi conferido a ele pelo Estado; (5) a criança fica sem o que realmente precisava, uma psicoterapia; (6) um diagnóstico e uma prescrição são coisas muito sérias, tratadas com pouca seriedade, o diagnóstico é um rótulo que a criança carrega pelo resto da vida (“sou TDAH”) e pode ser prejudicial, fazendo a criança encaixar-se nesse rótulo sem que realmente a represente, e a receita de um psicofármaco não é como indicar uma aspirina. Claro, como já disse, isso é apenas uma hipótese, mas não está tão longe da realidade: já vi muitos casos baseados justamente nessa história. E tudo isso mostra o quanto é importante o atendimento de uma equipe multidisciplinar com autonomia para exercer suas funções.

Me estendi um pouco mais nessa alínea porque considero que seja a mais problemática e que deve ser mais discutida no Projeto de Lei.

Art. 4º, III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;

Olhando a princípio não vemos muitos problemas aqui. Mas a grande questão se refere a “procedimentos invasivos“. O próprio PL define assim:

§ 4º Procedimentos invasivos, para os efeitos desta Lei, são os caracterizados por quaisquer das seguintes situações:
I – invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos;
II – invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos;
III – invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos.

O parágrafo 5º trata das exceções:

§ 5º Exetuam-se do rol de atividades privativas do médico:
I – aplicação de injeções subcutâneas, intradérmicas, intramusculares e intravenosas, de acordo com a prescrição médica;
II – cateterização nasofaringeana, orotraqueal, esofágica, gástrica, enteral, anal, vesical, e venosa periférica, de acordo com a prescrição médica;
III – aspiração nasofaringeana ou orotraqueal;
IV – punções venosa e arterial periféricas, de acordo com a prescrição médica;
V – realização de curativo com desbridamento até o limite do tecido subcutâneo, sem a necessidade de tratamento cirúrgico;
VI – atendimento à pessoa sob risco de morte iminente.

Com as exceções, descarta-se o problema que teria o enfermeiro, por exemplo: se o médico devesse executar a punção venosa e arterial, quando você fosse tirar sangue em um laboratório, somente poderia fazê-lo com um médico. Mas isso deixa outros problemas. Como fica a acupuntura (que já entrava na questão do artigo anterior)? E cria ainda situações, no mínimo, estranhas. De acordo com a redação do Projeto de Lei, se o Ato Médico passar, você só vai poder fazer uma tatuagem com prescrição médica!

Art 4º, V – definição da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como as mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas;

Art 4º, VI – supervisão do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;

Aqui entra uma questão relativa à atuação de fisioterapeutas, que trabalham muito com a ventilação respiratória principalmente em UTIs. O texto foi modificado atribuindo ao médico apenas o planejamento e supervisão da ventilação, a execução continua aberta para outros profissionais. Como não atuo na área, não tenho como opinar com mais profundidade nessa questão, mas acho que se o fisioterapeuta atua sobre o funcionamento motor do paciente, não há razão para limitar seu campo de ação. Se algum fisioterapeuta passar por aqui, sinta-se livre para contribuir nos comentários! De qualquer forma, é importante destacar que em caso de risco iminente de morte, as atribuições acima deixam de ser exclusivas a médicos.

§ 6º O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação.

Se alguém estava se perguntando a respeito dos dentistas, fica respondido.

§ 7º O disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências próprias das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia.

Pelos pontos que levantei até aqui, percebemos que esta recomendação é extremamente conflituosa com o restante do Projeto de Lei.

Artigo 5º

O Artigo 5º se refere às funções de chefia e ensino na medicina.

Art. 5º São privativos de médico:
I – direção e chefia de serviços médicos

Com o adendo:

Parágrafo único. A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa de médico.

A questão aqui é que, se o hospital se baseia em um atendimento multidisciplinar, não faz qualquer sentido vincular posições de chefia exclusivamente a médicos.

Como anda

Hoje (19/06/2013) o Senado aprovou, depois de mais de dez anos em discussão, o Projeto de Lei 7703/2006, que deve agora ser submetido à Presidente Dilma Rousseff, que deverá sancionar ou vetá-la.

Conclusão

De resto, não vejo grandes problemas no Ato Médico. Concordo com a regulamentação da profissão do Médico, mas acho que o problema aqui é a forma com que o Projeto de Lei invade o campo de atuação de tantas outras profissões da área da saúde. Em muitos casos, me parece uma tentativa de dominar (ainda mais) o mercado e subordinar outros profissionais em matérias que vão muito além da alçada do médico. Como psicólogo, muito me preocupa este movimento rumo à limitação do campo de escolha do paciente e também da atuação do terapeuta. É importante destacar que o médico não tem qualquer treinamento em questões da psicologia em sua graduação (pouco importa se recebe em especialização ou residências, temos que considerar que o médico graduado tem autorização para atender) e, portanto, não tem melhor condição de perceber o que é melhor para o paciente no sentido das questões psicológicas (assim como nos demais casos).

Sou a favor da regulamentação da medicina. Mas como é escrito hoje, pelo bem do paciente e de milhares de terapeutas, não posso ser a favor do Ato Médico. Por isso, sou contra o Ato Médico!

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Seja você médico, profissional da área da saúde, paciente ou cidadão, está mais do que convidado a participar dessa importante discussão nos comentários.

Para saber mais:

Projeto de Lei 7703/2006 – Ato Médico
Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro
Nota do Conselho Federal de Psicologia sobre o Ato Médico (19/06/2013)

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