TDAH – Além da sigla

Trabalho hoje em dia principalmente com crianças e adolescentes. Posso dizer com segurança que ao menos 80% dos pais que buscam terapia para seus filhos comigo, na primeira entrevista, apresentam a mesma queixa: “meu filho é TDAH”. Mas percebo também que pouca gente entende o que isso representa.

Primeiramente, o filho de ninguém “é” TDAH. A sigla representa um transtorno psíquico, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Trata-se de uma condição, transitória ou não, e não de uma forma de ser. O mais correto seria dizer que “fulano tem TDAH”. Mas tem mesmo?

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TDAH – Moda?

Um dos maiores problemas que encontro na minha prática clínica com menores é o critério de diagnóstico adotado pelo médico que o encaminhou. Vivemos hoje em meio a uma “enxurrada de TDAHs”. A criança é agitada? TDAH. Quer brincar ao invés de estudar? TDAH. Não presta atenção na escola? TDAH. Notas baixas? TDAH. O diagnóstico do transtorno está virando uma grande desculpa, seja pelo método extremamente desinteressante e ultrapassado das escolas tradicionais, seja pela falta de habilidade dos pais ao lidar com os filhos.

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Claro, não quero dizer através desse texto que o TDAH não existe. Ele existe sim, e o percebo em alguns de meus pacientes. A grande questão aqui é a patologização de comportamentos normais por motivos “obscuros”. O psiquiatra Allen Frances, revisor do DSM-IV (quarta edição do manual de diagnósticos para doenças e transtornos mentais) é um grande crítico dessa postura. Segundo ele, de 1990 para cá, o número de crianças diagnosticadas com TDAH e medicadas com estimulantes (como Ritalina e Adderal) cresceram, nos EUA, de 600 mil para 3,5 milhões! Essa porção da indústria farmacêutica que faturava algumas dezenas de milhões de dólares por ano está atingindo 10 bilhões de dólares anuais! É muito dinheiro.

Embora não seja possível afirmar quanto a esses medicamentos, se sabe que as companhias farmacêuticas nos EUA abordam frequentemente os médicos para “incentivá-los” a receitar os medicamentos de seus laboratórios. No filme O Amor e Outras Drogas (2010) podemos ver, de uma forma romantizada, como ocorreu a explosão de vendas do Viagra. O mesmo é feito com muitas outras drogas. E certamente, um mercado com uma fatia tão grande não deve ser ignorado pelas corporações farmacêuticas norte-americanas.

Não sei se é esse o caso no Brasil. Aqui temos um outro tipo de problema. Embora seja a solução para o grande público, o plano de saúde é um grande entrave para o desenvolvimento da saúde no país. É evidente que poucos têm o poder de bancar uma consulta particular (cujos valores chegam facilmente a R$1.000 nos grandes centros), mas o atendimento que o paciente recebe acaba ficando muito aquém do necessário. Como o valor repassado pelo plano ao médico é ínfimo, é necessário atender o máximo possível de pacientes. Por isso existem os encaixes, as consultas relâmpago… Assim, em uma anamnese (resumindo, a entrevista em que colhemos os dados clínicos do paciente) que muitas vezes dura menos de dez minutos, é impossível conhecer o mínimo do paciente que esclareça algum caminho terapêutico adequado. Muitos pais de pacientes meus dizem ter ido a um psiquiatra ou neurologista, disseram que o filho era agitado, estava com notas baixas na escola e saíram de lá com um diagnóstico de TDAH e uma receita de Ritalina. Embora o diagnóstico seja baseado em critérios sugeridos por algum manual (como o próprio DSM ou a CID – Classificação Internacional de Doenças), todo o contexto do paciente é deixado de lado. O diagnóstico não pode se resumir a um preenchimento de checklist. Minhas entrevistas duram uma hora com os pais, e o período de avaliação pelo menos um mês. É o mínimo de que preciso para realmente conhecer o paciente e sugerir algum diagnóstico.

O perigo do diagnóstico

Evito ao máximo trabalhar com diagnósticos psicológicos. Na minha linha de trabalho, acredito que o diagnóstico pode ser mais prejudicial do que benéfico. Meu rumo terapêutico é determinado pelo que o paciente me apresenta e pelo meu instrumental teórico, e diagnosticar alguém pode levar a pessoa a “vestir a carapuça”. Em alguns casos, a necessidade de um olhar de outra pessoa é tão grande que a pessoa abraça o diagnóstico e assume todos os sintomas envolvidos, ainda que nem os apresentasse anteriormente. Assim, acaba estagnando na terapia e não resolve os pontos que precisava.

O diagnóstico de TDAH é ainda mais perigoso – trata-se de um transtorno infantil, que surge até os 7 anos, de acordo com o DSM-IV, ou até os 12, segundo o contestado DSM-V. Todavia, é constantemente estabelecido para qualquer idade, sem qualquer critério.

Em segundo lugar, outro critério é abandonado. Recordando: a sigla TDAH significa Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade. Pode existir, no paciente, uma ênfase no déficit de atenção, na hiperatividade ou nos dois, mas deve haver ocorrência de ambos. Já recebi muitos pacientes com o diagnóstico de TDAH e, ao perguntar como era a agitação da criança, recebi como resposta “ah não, ele(a) é calminho(a)”. Ou o contrário, é agitado mas não tem dificuldade em prestar atenção.

É importante destacar novamente: o TDAH é um transtorno psíquico. Estabelecer esse tipo de rótulo a uma criança ou adolescente, período no qual a subjetividade está se estabelecendo é algo muito delicado. Muitas crianças que não tem nenhum grande problema, à parte da vontade de ser criança e brincar, acabam desenvolvendo alguma questão mais complicada por “serem TDAH”, podendo usar até mesmo o diagnóstico como desculpa por seu mau comportamento e a falha dos pais, em educá-las.

Por fim, é importante que o diagnóstico seja dado por um profissional especializado. Já me deparei algumas vezes com casos de professores(as) que, frustrados com sua incapacidade de lidar com certos alunos, simplesmente desistiram do caso dizendo que a “a criança é TDAH”. Para se chegar a esse diagnóstico é preciso um profissional, com uma bagagem teórica considerável, uma investigação profunda, sensibilidade e um método científico – qualquer outra coisa é só um chute. Embora o método escolar precise ser genérico, para dar conta da formação de tantas pessoas, ele não é infalível nem universal de fato, e muitas crianças (na verdade, a maioria) não se encaixa nele.

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O déficit de atenção

Para entendermos melhor o quadro do TDAH, é importante estudarmos seus elementos. O déficit de atenção é um ponto que costuma levantar muitas dúvidas ao público não especializado. Quando falamos em déficit significa que há um rebaixamento na atenção. Todavia, podemos distinguir dois tipos de atenção. Uma se refere à nossa capacidade de nos focarmos em algo e mantermos nossa atenção concentrada. No caso que estou levantando nesse artigo, representa a criança prestando atenção na professora. Sua atenção está dirigida, focada. Por outro lado, existe um tipo de atenção periférica e está ligada à nossa habilidade de percebermos estímulos no ambiente. A mesma criança, enquanto está prestando atenção na professora, percebe quando um colega a chama. Existe uma forma de equilíbrio entre esses tipos de atenção que permite ao indivíduo saudável transitar entre elas. Quando existe um déficit, esse trânsito não é possível. A criança pode não conseguir se focar na professora, distraindo-se por qualquer outro estímulo: o barulho do ar condicionado, o passarinho passando pela janela, alguém andando no corredor… O reflexo disso é que muitas vezes o desempenho escolar cai, pela incapacidade da criança em prestar atenção na matéria ou na prova (é quando acontecem aqueles erros bobos, ao trocar um sinal em um aprova de matemática, por exemplo). Mas não se assuste com a falta de atenção das crianças na escola! De fato, tem muita coisa muito mais interessante para se pensar do que a aula de matemática… Considera-se o déficit de atenção quando ele ocorre de forma generalizada – no caso que estamos tratando, a criança não conseguiria prestar atenção nem mesmo no desenho animado, no videogame, no tablet. A falta de atenção “seletiva” só representa algo presente em qualquer adulto saudável – nos desinteressamos facilmente por assuntos tediosos (espero que não seja o caso desse artigo!). A grande questão é mostrar à criança a responsabilidade do estudo, que mesmo os adultos precisam sujeitar-se a coisas que não são tão legais pela nossa noção de responsabilidade.

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A hiperatividade

Vamos agora abordar o outro lado do TDAH: a hiperatividade. Devemos, antes de qualquer coisa, diferenciá-la da agitação. É normal, natural e saudável que a criança seja agitada. É um momento extremamente empolgante, de exploração e descobertas. Faz parte da psique da criança querer aproveitar tudo que puder, ainda que seja “multifunção”. Claro, brincar é uma atividade importantíssima nesse sentido. É uma forma para a criança interagir com o mundo e elaborar essa confusa interação. Essa agitação pode incomodar o adulto, que também tem sua vida como sujeito, passa o dia trabalhando, tem suas próprias responsabilidades. Encarar essa agitação toda do filho ao chegar em casa pode ser chocante (e cansativo). No entanto, se proteger sob o guarda-chuva da “hiperatividade” não elabora muita coisa. A hiperatividade é uma incapacidade quase que absoluta de manter-se parado. É como uma agitação que é mais forte do que a capacidade da criança em conter-se. Frequentemente, a hiperatividade se reflete no sono, através de bruxismo e sonambulismo e está associada com uma ansiedade muito intensa.

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O tratamento

Por fim, chegamos novamente à questão do início do post. Algo muito comum em minha experiência clínica é receber crianças que foram indicadas por um neurologista ou psiquiatra já medicadas com a pílula mágica do momento: a Ritalina. Acho o uso indiscriminado desse medicamento algo extremamente complexo. Trata-se de um medicamento de eficácia extremamente incerta, com efeitos indesejados preocupantes e consequências ainda obscuras para a saúde da criança. Allen Frances levantou um slogan que considero bastante interessante: “Ritalina não é Aspirina”. Devido à falta de estudos sérios quanto aos efeitos da Ritalina, não podemos considerá-lo um medicamento seguro. Além disso, ser usuário de um remédio controlado ainda quando criança pode deixar uma marca extremamente perigosa no desenvolvimento psíquico do sujeito. Principalmente em nosso contexto, em que o diagnóstico do TDAH é utilizado de forma tão irresponsável. Não se diagnostica TDAH em uma consulta de 15 minutos, não importa o quanto seja o profissional. O ideal é que se faça uma avaliação neuropsicológica para determinar a terapia, se medicamentosa, psicoterapêutica ou ambas.

Para mais informações sobre o TDAH, sugiro o ótimo blog de Allen Frances, no Huffington Post (em inglês). Se quiser saber mais, deixe sua dúvida no campo de comentários ou envie-me um email!