Sobre a perfeição #1 (ou “A insistência no erro”)

Perfeccionismo é uma palavra complicada, carregada de significados. Há quem execute tudo que lhe cabe com muito esmero, um cuidado irretocável. Também temos pessoas que são simplesmente incapazes de aceitar qualquer falha em seus afazeres, sentindo-se extremamente perturbadas quando algo foge do planejado. Existe ainda aquele que se frustra vez após vez, porque nada fica à altura do planejado. Contudo, em todo caso algum nível de pressão se faz presente.

Perfectionism

Ora, isso é lógico. A perfeição é apenas um conceito ideal e, portanto, inatingível. Pensando a princípio, a busca pela excelência só poderia nos levar à frustração – se, como diz o ditado, nada é perfeito, seria muita pretensão de nossa parte acreditar que alguma produção nossa alcançaria tão sublime status. Mas isso é um outro problema que baseia grande parte de nosso pensamento ocidental há séculos: ou se tem algo ou não. Ou se é algo ou não. Ou se é perfeito ou está errado.

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Trata-se de uma linha de pensamento muito binária. É importante que possamos retomar um conceito surgido na Grécia antiga e que por muito tempo acabou sendo deixado de lado, o devir, isto é, o processo pelo qual se atravessa para que alguma transformação seja possível. Este conceito evoca um significado de fluência. Acredito que a perfeição se encaixa mais nessa definição, de movimento, do que na de adjetivo – tal coisa é perfeita. Até porque a perfeição não pode ser estática, já que depende de seus interlocutores, isso é, de quem a percebe como perfeita. Se ela se transforma, perde o valor de perfeição. E daí, caímos em um problema filosófico chamado paradoxo, o qual, brilhantemente, Winnicott declarou que deve ser sustentado e não solucionado. Então, sigamos o psicanalista inglês e deixemos essa questão simplesmente no ar.

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Bem, tomamos este curto decurso filosófico para discutir essa questão, muito contemporânea. Destaco dois tipos de pressão muito intensos quanto às exigências sobre a perfeição – tanto internas quanto externas. As externas são bastante óbvias: nossa cultura exige que tudo seja impecável. O trabalho precisa ser perfeitamente executado. As fotos que aparecem no Facebook ou Instagram devem mostrar uma vida perfeita. A mulher precisa ser boa mãe, esposa, dona de casa e trabalhadora. Ou, pelo contrário, perfeitamente independente. O homem tem que ser um perfeito provedor do lar. O time de futebol precisa ser imbatível. Se a Seleção perde um campeonato, ainda mais para a Argentina…

Evidentemente, não é exatamente assim que acontece, é só uma caricatura (em boa parte das vezes). Mas certamente é um pensamento que paira sobre todos. O que nos leva às questões internas, tão perigosas quanto as externas.

Uma exigência pessoal pode ser muito saudável, porque nos ajuda a executar melhor nossas tarefas. Conseguimos algum destaque que nos leva a crescer pessoalmente e profissionalmente, e alcançamos algo que nos faz muito bem (e que é, no fundo, o que realmente queremos quando nos esforçamos tanto), que é o reconhecimento. No entanto, essa impecabilidade pode sair pela culatra, como mencionei no início desse post. Não corresponder ao sublime pode ser fonte de imenso sofrimento. Convencionamos a chamar essas pessoas de TOCs (o que já é errado pelo que a própria sigla quer dizer). Ou alguém cheio de TOCs (idem). O que é certo é que se trata de uma certa obsessão com a tão inalcançável plenitude – e já nos parece bastante óbvio o quão inútil é esse tipo de esforço, ainda que em muitas vezes se trate de um movimento inconsciente.

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O perfeccionismo de Stanley Kubrick na fotografia cinematográfica de O Iluminado

Não me entenda mal, não estou dizendo que o desleixo é a solução. Até porque, se você pensa assim, não entendeu o princípio desse texto. A grande questão aqui é encontrar um meio-termo no qual seja confortável (e possível) viver. Precisamos saber que nossa responsabilidade é sempre fazer o melhor que pudermos, mas é bastante irresponsável de nossa parte assumir um compromisso com o perfeito. A busca pela perfeição, na verdade, só é recompensadora enquanto nos sentirmos nesse caminho ainda que nunca alcancemos nosso destino.

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